Chico Buarque de Holanda

"Mesmo que os cantores sejam falsos como eu/ Serão bonitas, não importa/ São bonitas as canções/ Mesmo miseráveis os poetas/ Os seus versos serão bons"

Inocência Perdida

(escrito em 07/12/04)





Quem pode me condenar, se todos somos réus no julgamento da vida?
Quem poderá saciar-me a fome, trazer-me um prato de comida?
Quando o sono pesar sobre minhas pálpebras, me diga:
Quem me desejará uma boa noite, numa terna despedida?
Não há partida. Não há chegada
Apenas um andarilho solto na estrada
Sem carinho, sem rumo, sem terra, sem nada
Durmo nas praças. O relento sim é minha morada
Passo fome. Passo frio
Vejo “uzome”... Um calafrio!
Não importa o que eu diga,
Julgam-me pelo meu perfil
Eles matam minha raça
Em mim transpassa um arrepio!
Não me julgue se me deleito com a criminalidade
Teu crime é bem maior
Sou apenas o reflexo da tua maldade
Sou um peso para a sociedade,
Que finge ter dó, mas não há piedade.
A verdade é que sou apenas publicidade
Alvo dos falsos debates
A vaca da TV chora e simula humildade ao falar da minha realidade
Hipocrisia, dura hipocrisia!
Projetos contra a fome e em prol da moradia
É mirabolante tudo o que ao pobre propicia
Inocência perdida
Eu era apenas uma criancinha
E só queria um pouco de fanta daquela linda burguesinha
Mas ela aciona a polícia—
Tapa, choque, soco. Amnésia maldita!
Só me lembro do sofrimento
Não lembro da minha família
Meu nome? Meu caráter? Minha vida?
Amnésia maldita!
Inocência perdida.

(por Cristiano e Daniel Elias)

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