Chico Buarque de Holanda

"Mesmo que os cantores sejam falsos como eu/ Serão bonitas, não importa/ São bonitas as canções/ Mesmo miseráveis os poetas/ Os seus versos serão bons"

Parto

(20/02/2011)



Parto para a rua e lá encontro um menino
Feliz, brincando, sorrindo
Percebo a semelhança
Igual a mim criança
Sorvendo com a alma
As alegrias da infância
Parto e me reparo
Reparo em mim e paro
Lembrando...
Foguetes, folguedos,
Ir para a escola cedo
Sorvetes, brinquedos
O breu que bota medo
Fase tão feliz
Frases que eu fiz, inventadas
Inventei que eram passadas
Que nada!
Parto para a vida
Por erro repartida... em fases
Crianças esperanças, adultos incapazes
Tenho, em mim, todo o meu ser
Só posso ser passado se eu puder me esquecer
Não posso, ainda
Minha vida inteira é vinda... à toda, à tona
E, inteira, me impulsiona
Nada ainda se acabou
Parto e me reparo
Reparo em mim e vou
Pensando...
Não fui feliz, ainda o sou

Da minha janela

(13/02/2011)

Em versão ampliada:
Da minha janela, a vida é um buraco na rua
Coberto de entulhos
É um asfalto tênue, por onde correm crianças,
Prestes a ruir
Da minha janela, a vida são carros
Parados em calçadas tortas
É infância pedinte
Casas sem requinte
Da minha janela, e não apenas dela,
A vida é o som ensurdecedor dos porta-malas abertos
Sem malas, decerto
Barulho sem fim, sem fins, aos fins de semana
Da minha janela, a vida são gritos pedantes
Desencontro de amantes
São crianças pilotando motos
Compradas com dinheiro próprio, não digo como
Da minha janela, a vida é uma fresta de céu
Cobrindo uma fresta de vida
De uma gente não assistida
Senão da minha janela

Retalhos

(05/02/2011)

Porque no saco de pipoca, a pipoca não cabe, mas cabe na bacia
Porque na caixa, não vem leite, vem um não sei o que, pelo qual eu pago
Porque eu, humano, bebo o da vaca, ou beberia
Porque quem não tem nem o que vestir já comeu no Mc Donald’s
Porque a classe média está falida e é minha maior perspectiva de sucesso
Porque estão nos roubando
Porque estamos aceitando
Porque os fracos esperam o favor dos fortes
Porque usamos roupa em país tropical
Porque qualquer um que trabalhe e apareça na TV é chamado de artista
Porque cresci ao som do É o Tchan, forçosamente
Porque existe Restart
Porque seus fãs não diferem muito dos que estiveram em Woodstock
Porque eu posso receber xingos por dizer isso
Porque os câmeras nunca filmam o instrumento que eu quero ver enquanto o ouço
Porque precisamos mexer o corpo ao som da música
Porque gostam de Barbie e... quem?
Porque esse jogo de palavras é previsível
Porque eu poderia falar ainda tantas coisas
Porque um dia não puderam falar quase nada
Porque em alguns lugares ainda não podem
Porque o ambiente dita as ordens
Porque ainda que eu não queira, tudo isso faz parte de mim
Porque tudo isso me intriga

O destino de um só


Como ousas tentar ser feliz?!
Tu não podes ser(,) tu(,) não podes
Em nenhuma das possibilidades de vírgula
É teu destino ser só... isso
Só isso
O umbigo dos outros é sempre mais bonito
O teu próprio é esconderijo
Só isso
Tua alma não é feita da mesma essência
Ela não voará quando, tranquilo, dormires em tua cama
Ela não planará sobre o teu coma
Tua alma pesa, e nem sequer inflama
Pobre, vil, infame e gorda dama
Em verdade, não é tua alma que pesa
É tua vida
Tua alma está cheia dela
Está cheia!
Queira desfazer-te da tua carga
Larga tudo pelo chão
Larga!
Larga mão!
Nada disso é p'ra ti
Retira-te
Restaura-te ao nada
Recolha-te ao vão

Hai-Kai

Vida a partilhar:
Pés juntos no mesmo passo
Ante o vasto mar

Profissões

(18/09/2010)


– Quem é você?

– Sou o João.

– Conheci muitos Joãos, tão diferentes Joãos. Receio que o seu nome não me diga nada sobre quem é você. O que você é?

– Sou confeiteiro.

– O que te define é a tua profissão? Ou seria ela quem nasce da tua definição? Por que não te definem os seus hobbies, suas paixões, seus medos ou suas frustrações?

– Ora, é assim que todo mundo faz. Todos são o que são as suas ocupações. Um é pedreiro, outro é engenheiro, outro é estudante, outro é desempregado, é assim que as coisas são. Talvez você devesse me perguntar “o que é você?”. É diferente de “o que você é?”.

– Você me parece esperto demais para um confeiteiro.

– Você está julgando o que sou, ou o que eu deveria ser, pela minha profissão?

– É, acho que sim. Não é assim que todo mundo faz?

– É, acho que sim. Mas, me diz, então, e você o que é?

– Eu sou qualquer coisa sem par neste mundo.


O Tronco Encantado

Um conto de fadas pensado palavra por palavra. Cinco palavras por verso, sem rima. Uma história encantadora para quem sabe ler nas entrelinhas, escrita por Beatriz Verzolla, Cristiano de Oliveira e Marcelo Yamamoto, em 18/07/2010. Boa leitura!


"Era uma vez, um camponês
que estava procurando uma terra
em um reino bem distante.
Ele era um bravo aventureiro,
nem imaginava os perigos futuros.
Um dia, chegando perto do
reino distante do rei Adamastor,
esteve pensando na conversa que
teve ontem, antes de sair,
com sua linda irmã Sofia,
herdeira do reino Acheropita Papazone.
Os dois conversaram por horas,
e ela o preveniu dos
perigos que rei Adamastor oferecia
O camponês ficou muito preocupado,
mas, nem por isso temeroso.
Adegesto Pataca deixou de rumar
e parou um instante, pensativo,
e concluiu que era preciso
um cavalo e um amigo
para continuar sua longa jornada
até o seu poderoso inimigo.

Já cansado, mas, valente, busca
um abrigo seguro para dormir
na hostil terra estrangeira, onde
a escuridão envolvia seu ser.
No dia seguinte, ao amanhecer,
prosseguiu sua caminhada, mas, antes,
em sua confusa mente, viu
que havia esquecido sua espada.
Bravo, não pensou duas vezes:
olhou em volta e avistou
um robusto tronco de árvore,
onde morava um feiticeiro amigo.
Com sua magia, o mandou
diretamente ao reino de Adamastor,
sob a condição de que
levantasse o robusto tronco com
suas próprias mãos de camponês.
O rapaz, prontamente, se posicionou
e, com toda sua sabedoria
e com muito esforço, conseguiu
o que ninguém jamais pôde.
O feiticeiro ficou muito surpreso:
Adegesto Pataca erguera o tronco!
E seu segredo, ninguém soube,
apenas Romixinaide, o bondoso feiticeiro.

Quando finalmente chegou ao reino,
todos queriam saber quem era
aquele que levantara O TRONCO.
Adegesto foi aclamado como herói.
O rei, ao saber disso,
entregou a Safira Azul Esverdeada,
como forma de retribuição pelo
grande feito que salvara a
sua filha do robusto tronco
que a aprisionava há anos,
pela maldição da velha bruxa.
Raphzia Latiff a trancou, pois
tinha inveja de sua beleza.

O rei, então, prometeu casar
Apurinã com o bravo camponês
que a libertou do confinamento.
E a bruxa foi lançada
para um local onde havia
um robusto tronco, semelhante ao
que aprisionara a linda princesa.
O reino ficou em festa.
Finalmente, a temida bruxa acabou
aprisionada, deixando tranqüilo o reino.
Assim, todos viveram em paz
no reino encantado de Jumelândia.”

Inacabada

(escrito em 02/05/2010)

Todo mundo sabe o que é sentir vergonha

Mas nem todo mundo sabe o que é a timidez

Todo mundo sabe o que é sentir a fome

Mas nem todo mundo sabe o que é a escassez

Todo mundo sabe o que é sentir amor

E a dor daquele amor que um dia se desfez

Porque todo mundo nesta vida

Já viveu de toda dor ao menos uma vez
(...)

Sem título

(em 23/06/2010)

Quero lembrar que a idéia não está na mente, está na mentalidade

Que o impulso não está no ID, está na idade

Quero nascer anterior à mentira

Quero matá-la e enterrá-la em minha ira

Quero dormir o meu sono menino

Querubim retornado ao berço mais fino

Meu coração vagabundo

(Escrito em 08/05/2010)

Meu coração vagabundo
Quer saber se o mundo ainda tem lugar
Onde cada passo oriundo
Do meu ser profundo possa caminhar
Onde cada rastro advindo
Do meu ser infindo possa se mostrar

Meu coração nada bobo
Não obstante probo, quer se endireitar
Quer fugir do afobo
Da estirpe de lobo sem bando e sem par
E talvez entenda
De se pôr emenda, pra no fim ganhar